13 de abr. de 2010


O RETORNO DE DEUS



No pequeno lugar ao sul de Inglaterra, Clayton, numa simpática e simples “cottage”, casa típica das áreas rurais inglesas, Peter vivia com sua família, mulher e um casal de filhos na faixa dos 10 a 12 anos. Todas as manhãs saía de casa, andava cerca de quinze minutos até à estação de Hassocks para apanhar o trem para Londres onde trabalhava há mais de dez anos na mesma empresa.
Homem traquilo, decidido e enérgico profissional, bom chefe de família, tinha, aparentemente, tudo para estar de bem com a vida. Aos domingos acompanhava a família ao serviço religioso, e sempre de lá saía cumprimentando os vizinhos, amigos e o pastor, mas com a estranha sensação de ter simplesmente perdido tempo.
O ambiente da igreja e os sermões do pastor, não lhe diziam nada, mesmo procurando estar atento, e isso acabou por se tornar para ele uma preocupação.
Num desses domingos, um lindissimo dia de primavera, primavera com aquelas cores que só a Europa do Norte tem, nem um único fiapo de nuvem nos céus. Sentado numa cadeira de jardim, Peter contemplava aquelas terras verdes e bonitas que se estendiam para alem do limite do seu terreno. Eram dum agricultor que parecia estar a desistir da sua milenar profissão por não poder competir com os grandes produtores, e até abandonara um equipamento agrícola que jazia a uns duzentos metros de sua casa. Ia ganhando ferrugem, entristecia um pouco aquele ambiente de calma e paz, e nada tinha já que se aproveitasse.
Peter deixava o seu pensamento correr ao sabor daquela tranqüilidade, e teve então um quase sobressalto que de há muito mexia com a sua cabeça: “Se Deus existe, porque será que eu nunca me apercebi da Sua existência! Quanto gostaria de ter um sinal, qualquer que fosse!”
Naquele instante, do limpissimo céu claro, caiu um raio e um trovão com um poder imenso. Peter na sua semi sonolência não esperava tamanho estrondo e quase caiu da cadeira! Olhou em frente e viu que o raio atingira exatamente aquela maquina abandonada e que a fizera em frangalhos. E o céu não escureceu, nem qualquer outra nuvem se formou!
Peter temeu! Seria este o sinal que ele esperava que o tal Deus lhe mandasse? A verdade é que não havia nos ares a menor condição de formação de trovoada, e o trovão deu-se assim que ele “pedira” um sinal. Ficou abalado. Que “sinal” estranho aquele! Não conseguiu almoçar nesse dia, mal falou com a mulher e filhos deixando a família receosa que algo estivesse a afetar a sua saúde. Quiseram levá-lo ao hospital, mas ele respondia que estava bem. Podia estar bem mas parecia um estranho no seu próprio ambiente!
No dia seguinte voltou à rotina de ir pegar o trem, mas ao chegar à estação sentiu-se quase cambaleando, voltou para casa e avisou a empresa de que não estava passando bem. Jamais faltara por essa razão de modo que, se profissionalmente isso não o afetava, os colegas e superiores ficaram preocupados.
De volta a casa foi sentar-se na mesma cadeira onde na véspera assistira ao estranho fenômeno, e ali esteve quase todo o dia à procura de compreender o que se tinha passado. Queria reagir, sair daquela espécie de torpor, e decidiu que no dia seguinte, sentindo-se bem ou mal, voltaria ao trabalho.
O dia correu-lhe pesado, e até os colegas estranharam o seu silêncio e quase absentismo. Como na véspera avisara que não se sentia bem, o que era verdade, pensaram que seria ou o começo ou final de algum resfriado mais forte.
No final do dia saiu, como de costume, depois de todos os outros, e foi para Victoria Station pegar o trem de volta a casa.
Sentado num canto da carruagem, procurava nas páginas do “Evening Standard”, que sempre lia nas viagens de regresso, algo que ocupasse a sua mente cansada nem ele mesmo sabia exatamente porquê.
Na sua frente sentou-se uma mulher jovem, muçulmana, a cabeça coberta com o tradicional hijad, e ao seu lado um homem de origem africana, de meia idade, folheando também o mesmo jornal.
A viagem durava habitualmente quase duas horas; dava tempo para muitas vezes ainda cochilar um pouco, mas nesse dia era no jornal que procurava distrair-se.
Pouco tinham andado, talvez uns quinze a vinte minutos e, de repente, outro estrondo imenso, atirou com todos os passageiros para fora dos seus lugares, sentiam-se ferragens a torcer e a gemer até que a carruagem finalmente parou, fora dos trilhos e inclinada sobre um dos lados.
A composição tinha-se chocado com outra parada irregularmente na mesma linha!
Ouviam-se gritos de dor e pedidos de socorro. Grande desordem e caos dentro de cada carruagem. Peter foi projetado nem ele mesmo percebeu para onde e como. Deve ter perdido os sentidos por alguns momentos e quando começou a ter consciência da situação, percebeu que tinha havido um grave acidente. Sangrava, mas nem percebia de onde. À sua volta corpos espalhados, contorcendo-se e sangrando. Perto, com um profundo golpe na cabeça, reconheceu a mulher que vinha sentada na sua frente. Deslocando-se com dificuldade e muita dor em todo o corpo, procurou ajudá-la. Com o seu casaco improvisou uma espécie de almofada onde deitou a cabeça da mulher, depois de ter afastado o véu, rasgado, deixando à vista uma ferida grande. Com palavras calmas ajudou a mulher a agüentar o sofrimento e ajeitou-a num canto da carruagem.
O homem que vinha a seu lado, jazia também, sem sentidos, uma perna retorcida. Tinha uma grave fratura exposta! Peter rasgou a sua camisa e fez um torniquete na perna do desgraçado que sofria horrivelmente.
Ajudou ainda alguns mais até que exausto se sentou num canto, aguardando socorros, que não tardaram. Todos levados para o hospital mais próximo, Peter só pensava porque razão ele havia socorrido primeiro uma mulher muçulmana e um negro! Podia ter ajudado uns outros quantos, mas foi a esses dois que dedicou a pouca energia que conseguiu reunir até cair exausto.
No leito do hospital começou a pensar que tudo quanto lhe estava a acontecer eram “coincidências” demais! Primeiro o raio e o trovão, e depois o auxílio que prestara tão imediato àqueles dois que considerava “semi” estrangeiros!
Seria tudo aquilo “obra” de Deus que lhe queria mostrar que a vida só tem valor quando a dedicamos, desinteressadamente, aos outros?
Tão logo teve alta do hospital foi direto à igreja e, meditando com humildade, foi-se apercebendo que o “tal” Deus, afinal, lhe dera um recado completo!

12-abr-10

do Brasil, por Francisco G. de Amorim

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