5 de out. de 2009

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Mais uma opinião de um dos melhores escritores brasileiros

De  bem  a  pior
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por JOÃO  UBALDO  RIBEIRO
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Diante do portão ainda fechado, olho por entre as grades do edifício e avalio a rua. Poucos passantes, alguns porteiros varrendo a calçada, tudo indica que o temido encontro será evitado novamente. Tem dado um pouco de trabalho, mas venho conseguindo driblá-la com eficácia e faz tempos que não a vejo. Bem verdade que, paradoxalmente, tenho uma certa saudade dela, mas sou obrigado a reconhecer que fico aliviado por não vê-la, é melhor assim. Inspeção concluída, tomo coragem e saio andando em direção a banca de jornal, aonde chego sem problemas e da qual volto devagar, espiando distraidamente as manchetes e sem suspeitar do que me espera, depois de dobrar a esquina de minha rua.
— Ah-ha! — soa uma voz feminina enquanto recebo um puxão na manga da camisa e logo concluo que desta vez não consegui escapar; é ela novamente.
— Andava se escondendo, hein?
— Me escondendo? Não, claro que não. Por que eu haveria de me esconder?
— Porque não está cumprindo sua obrigação, é por isso! Eu confesso que não esperava isso de você, mas fato e fato, e o fato é que você não está cumprindo sua obrigação.
— Não entendi, não sei de obrigação nenhuma que eu não esteja cumprindo.
— Sua obrigação de descer o cacete nessa corja, é essa a obrigação que você não está cumprindo.
— Bem, eu não acho que tenho es¬sa obrigação. Alem disso, o sujeito cansa de dar murro em ponta de faca sozinho. A impressão que eu tenho, pela leitura de jornais, é que esta todo mundo satisfeito, com uma exceçãozinha aqui ou ali.
— Está todo mundo o que? Satisfeito? Satisfeito com que, com o governo? Eu pergunto a você: qual é a grande realização desse governo, além de uma Legião Brasileira de Assistência turbinada, qual é? 0 que é que mudou?
— Bem, assim de cabeça é difícil lembrar.
— Então eu ajudo, vamos lá. Mu¬dou a educação? 0 ensino público está uma beleza, o povo esta cada vez mais educado, os professores são bem pagos, fizeram uma gran¬de reforma, não foi?
— Eu sei que não é bem assim, mas...
— Mas nada, não tem "mas" nenhum nessa conversa, é tudo um hor¬ror mesmo e, quando acham um colégio melhorzinho, da reportagem no "Fantástico", é caso de comemoração. E saúde, a saúde vai bem, não vai? Todo mundo atendido, não tem mais esse negócio de dormir na fila ou esperar meses por uma consulta, tem?
— Você esta sendo irônica, eu...
— Segurança, tem segurança? Onde é que você está seguro? Dentro de casa, não está seguro. Na rua, não es¬tá seguro. No ônibus, não está segu¬ro. No restaurante, não está seguro. No hospital, não está seguro. Nem numa delegacia ou num quartel, porque vão lá e jogam uma bomba! Onde é que não assaltam e, se quiserem, torturam e matam, me conte, onde é?
A policia já aconselha a não sair com documentos, fazer o que o assaltante manda e assim por diante. Agora eu estou esperando que também aconselhem a gente a manter em casa um lanchinho para agradar os assaltantes. Melhor ainda, um brunch, que é mais chique e mais moderno. Uns drinquezinhos, uns brioches, tudo para os assaltantes não se aborrecerem. No futuro vão aparecer manuais e matérias de jornal com cardápios especiais para esse caso.
— Taí, você falou em futuro e me lembrou. Tem o pré-sal também.
— Tem, tem. Ninguém sabe direito se vai dar para extrair esse petró1eo e, se der, como é que vai estar o petróleo daqui a dez ou quinze anos. 0 futuro não era o etanol, não eram as fontes de energia renováveis? Agora não é mais, é o petróleo mesmo, não é? Tão certo quanto as eleições que vem aí.
— Você não está sendo um pouquinho pessimista, não? As própria eleições são uma esperança.
— São, são. Esperança de que entrem ladrões novos, para substituir os velhos, isso é importante, é sempre interessante observar as gerações mais jovens se firmando. E os métodos de roubar com certeza vão mudar também, nada de saudosismo, vamos aos novos paradigmas da corrupção, o Brasil não pode ficar para trás.
— Olhe aí, você trouxe outra coisa à baila, o Brasil hoje é outro, no panorama internacional.
— É, eu sei, é o pais dos barbudinhos exóticos, os gringos gostam muito, se divertem bastante. E ainda nos empurram os bagulhos deles.
— Que é isso, também não é assim.
— Eu sei, é pior. Agora, com a embaixada brasileira em Honduras transformada em quartel-general da cucarachada, com essa cafajestada diplomática toda, está uma beleza, somos alvo do respeito uni¬versal, não é, não? E os gringos também acreditam nesse papo de que "não sei de nada", "não ouvi nada" etc. e tal.
— É, já vi que você hoje está mesmo com toda a corda.
— Ao contrário de certos escritores que eu conheço. E já que, ao que parece, você também está achando tudo ótimo, pelo menos, ponha na sua coluna um título que seja fiel à situação do Brasil de hoje. Eu lhe ofereço um de graça. Que tal "de bem a pior"?


JOAO UBALDO RIBEIRO é escritor.

Um comentário:

Sandra Fayad disse...

João Ubaldo Ribeiro é um daqueles ídolos que gosto de ler sempre.
A crítica e o deboche do deboche que vivemos é bem representado no momento atual, especialmente quanto ao que ocorre na embaixada do Brasil em Honduras. Que situação!!!
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