24 de jan. de 2010

.
Carioquices eclesiásticas

Em 10 de Julho de 1576 o papa Gregório XIII criou a Prelazia de São Sebastião do Rio de Janeiro sob a administração do Bispado de São Salvador da Bahia, instituindo um o prelado administrador com poderes e faculdades quase episcopais. O primeiro a ocupar o cargo foi o Presbítero do Hábito de São Pedro Bertolameu Simões Pereira, que não deve ter entrado com o pé direito porque começou logo a ser perseguido pelo povo, que se indispôs contra a demasiada autoridade que o prelado se arrogava, e este não teve outro remédio se não retirar-se e foi para a Capitania do Espírito Santo.
É bom ter em mente que naquele tempo os habitantes destas paragens, pelo menos um boa parte deles, tinha imigrado para longe de Portugal terra sujeita a excesso de autoridades: o rei, ainda a melhor delas, os nobres, e sobretudo os padres, bispos, etc., com a sua inexorável arma da excomunhão, sua prepotência e ainda com a constante ameaça da Santa – santíssima! – Inquisição.
O Novo Mundo apresentava-se-lhes como uma espécie de paraíso onde o Reino de Deus era oferecido a cada homem, independente de hierarquias e imposições, que na Europa já tinha dado origem à Reforma e a toda a evolução da ciência e “das luzes”! Ora um recém chegado disposto a fazer regredir a liberdade, com certeza não era “persona grata”. Tinha que ser um grande religioso, em toda a acepção da palavra, para cativar almas rudes. E grandes religiosos, houve, sim, mas não tantos quanto seria desejável.

Seguiu-se na Prelazia, o Bacharel João da Costa, logo também odiado e perseguido pelo povo. Retirou-se em 1591 para S. Paulo onde foi deposto e morreu.


A baía da Guanabara em 1666


Veio depois, em 1607, o Dr. Mateus da Costa Aborim. O povo entrementes não teve a quem prestar contas. Mas o tal Dr. Mateus, abusado, vexou o povo com monitórias e excomunhões; excomungou os vereadores por quererem demolir uma casa de frades beneditinos a qual embaraçava o embarque e desembarque dos moradores da Prainha (hoje a Praça XV); procurou dificultar a ação de um desembargador enviado da Bahia pelo Governador Geral para sindicar no Rio; e fez mais umas quantas semelhantes até que acabou envenenado em 1629. Ainda esteve 22 anos a encher o saco dos cariocas!
Seguiu-se um frade beneditino que não durou um ano. Renunciou!
Os primeiros prelados abusaram tanto da sua “autoridade” que quando chegou o Dr. Lourenço de Mendonça, em 1632, poucos dias depois já o povo colocava um barril de pólvora debaixo da sua cama, com quatro morrões acesos! Explodiu e destruiu a casa mas o tal Dr. Lourenço... não estava! Tão pouco gostavam dele que quiseram enfiá-lo dentro duma embarcação desapalherada e levá-la até alto mar onde servia abandonada! Soube o Dr. Lourenço do qeu se tramava contra ele, fugiu, refugiou-se num barco e regressou a Portugal!

Em 1643 calhou a vez ao presbítero secular António Martins Loureiro. Assim que chegou foi visitar terras da sua jurisdição, e em São Paulo, ou pela má vontade do povo ou por sua arrogância, foi perseguido. Refugiou-se com os franciscanos, e apesar do povo ter cercado o convento, consegui evadir-se, fugir para o Rio, e sempre odiado, ir para o Espírito Santo, onde lhe administraram veneno, perdeu o juízo e assim regressou a Portugal!


O Rio de Janeiro em 1713, e a Ilha das Cobras com a sua fortaleza


1658, o rei escolhe o Dr. Manuel de Sousa e Almada, que depois de curto governo já havia voltado o povo contra ele que o acusou diretamente ao rei. Uma noite apareceu em frente de sua casa uma peça de artilharia que disparou uma bala que se foi alojar numa das paredes. Procedendo-se à devassa veio a verificar-se que tinha sido o próprio Almada para se fazer de vítima! Condenado a pagar as custas do processo, desistiu do cargo e foi-se!

O seguinte não foi mais diplomata: o Dr. Francisco da Silveira Dias, começou a sua administração por excomungar os que cortavam mangue nas marinhas fronteiras às terras dos jesuítas; acusaram-no de simoníaco pelo benefício que daí tirava e não tardou a largar o posto!

Eram estes prelados comissários do “Santo Ofício” e da Bula da Cruzada, mais uma das invenções de Roma contra o que se insurgiu Martinho Lutero, mas que lhes dava um rendimento considerável. Além disso atormentavam o povo com penitências e excomunhões, intrometiam-se em negócios estranhos à Igreja, mandavam indagar aos navios que demandavam o porto do Rio, de onde vinham, para onde iam, que carga carregavam, impediam que saíssem mercadorias da alfândega sem autorização sua. Além de tudo isto eram, regra geral, gente de pouca instrução e rara moralidade!

Não primava também o povo pela moderação e bons costumes! Não admira, o “Mundo Novo” era terra de liberdade e liberdades!

Em16 de Novembro de 1676 a prelazia foi elevada a diocese, com direito a bispo! As coisas pareciam que estavam a melhorar. O primeiro bispo foi homem de ação, prudente e douto, começou a moralizar a vida dos padres e com isto também a do povo.

Assim andou a Diocese, melhorando-se a cultura dos padres, aumentando a fé e o respeito dos fiéis, até que em 1741 veio ocupar a Mitra D. Frei João da Cruz. Ao visitar as Minas mostrou-se de tal forma rigoroso e tanto exorbitou que o povo arrancou os badalos dos sinos para que não repicassem à sua passagem! Quatro anos depois renunciou ao cargo e o Governador apoiou a sua renuncia pois era excessivo o descontentamento do povo mineiro!


Um dos raros impressos do tipógrafo António Isidoro da Fonseca


Em 1745 veio de Angola o Bispo D. António do Desterro, beneditino. Teve uma chegada atribulada porque parece que o navio que o trazia terá arribado às “Ilhas de Maricá”, o que significava desastre possível, até que finalmente em 1746 a Fortaleza de Santa Cruz anunciou a sua entrada na Guanabara. Este foi um grande administrador, admirado, estimado, misericordioso, bom, que teve um triste fim de vida ficando os últimos sete anos bastante doente. Um exemplo de pastor, que foi sepultado no claustro do Mosteiro da sua Ordem. (Não admira ser tão bom: veio de Angola!)

Foi no seu tempo que o tipógrafo português António Isidoro da Fonseca pretendeu instalar uma tipografia no Rio de Janeiro, chegando a produzir alguns impressos, mas tão logo em Portugal se tomou conhecimento desta “transgressão”, por ordem régia foram seus bens seqüestrados e queimados e o tipógrafo deportado para Lisboa!

Enquanto o Rio não teve o seu Bispo, parece que “as coisas” não corriam muito bem. Mas uma boa lição se pode tirar dessas brigas entre prelados e povo: o povo sabia reclamar, exigir os seus direitos, não se deixava espezinhar, mesmo que fosse ele mais inculto do que hoje (Seria?)

Mas essa força popular parece ter-se perdido. Hoje os administradores públicos mandam, desmandam, roubam, não fazem, e ao povo não lhe sobra disposição para exigir os seus direitos! Parece que perdeu a noção da sua força, além de estar dividido pelas teóricas ideologias políticas. Naquele tempo era “Povo unido...”

Que pena!



N. Estes elementos da vida carioca, foram recolhidos no livro “Rio de Janeiro – Sua história, monumentos, homens notáveis e curiosidades” – Vol. I, de Moreira de Azevedo, 3ª edição de 1969, ricamente anotada por Elysio de Oliveira Belchior. O primeiro volume saiu do prelo em 1861


24 jan. 10

15 de jan. de 2010


.
Rio de Janeiro
Um pouco de história

Faz o que ele diz, não faças o que ele faz! Bem tenho prometido, quase jurado e trejurado que não falaria mais de política, mas volta e meia a agonia pela vergonha e descalabro é tão grande que acabo expulsando uns quantos vitupérios, sem nada ganhar com isso.
Qualquer dia vou escrever sobre maquiavélicos e utópicos, ou babacas, como eu, somente para filosofar um pouco e acabar por me certificar, uma vez mais, que o mundo não é dos bonzinhos, mas dos f.d.m., i.é, dos gangsters.
Entretanto creio ser mais interessante pesquisar e divulgar um pouco a história desta cidade “maravilhosa”. E tem muita história, apesar de, por esse mundo fora, do Rio, quase só se ter notícia das suas praias, do Corcovado, Pão de Açúcar e das mulatas do Carnaval que, convenhamos, são monumentos às carnes humanas, algumas com longa história, muita “reforma” e plástica, mas, e a história da cidade?
Vamos nessa, apesar de haver bastante literatura sobre a história do Rio, sempre há lugar para mais uma ou outra passagem. Mas para não soltar lorotas ou simplesmente copiar o que se encontra por aí escrito, vá de sair em “excursão histórica” pelo Rio.

Como é de calcular não encontramos os primeiros europeus que se estabeleceram nestas bandas, na Baía da Guanabara, uns quantos franceses huguenotes que, fugidos à acesa intolerância religiosa no seu país, decidiram vir, em 1555, criar, em lugar tranqüilo – paradisíaco – a França Antártica. Comandados pelo senhor Nicolas Durand de Villegagnon, estabeleceram-se numa pequena ilha aparentemente segura, um pouco afastada da praia, a que deram o nome de Forte Coligny, homenagem ao Almirante Coligny, líder dos huguenotes em França, conhecida antes como ilha Sergipe, e mais tarde rebatizada com o nome de Villegagnon, onde hoje se encontra a Escola Naval.


Governava o Brasil, a partir da Bahia, Mem de Sá, que não gostou de intrusos em “terras d’El rei de Portugal”, e ao fim de algum tempo organizou uma expedição que veio ao Rio dar uns tapas nos franceses. Venceu-os e mais aos seus (poucos) aliados nativos e regressou à Bahia.

Mem de Sá

Não tardou a saber que os franceses continuavam instaladões no Forte Coligny. Nessa altura Mem de Sá achou que tinha que dar mais umas pauladas nos “hereges” franceses e organizou nova expedição que entregou ao comando do seu sobrinho Estácio de Sá.
Desembarca este na Baía da Guanabara em 1565, onde, na base do morro do Pão de Açúcar, lançou os fundamentos duma nova cidade, a que deu o nome de São Sebastião do Rio de Janeiro, dia 1° de Março daquele ano.



Começa por fincar no chão um marco de pedra, um padrão com as armas de Portugal em um dos lados e uma cruz no lado oposto, marca da posse e da fundação da cidade, ergue uma ermida de pau a pique e cobertura de palha, dedicada ao santo do nome do rei de Portugal, organiza os serviços da “cidade”, distribui terras e cargos, e dá um monte de bordoada nos franceses e seus amigos.

Entretanto Mem de Sá volta ao Rio para dar uma mão na luta contra o “invasor” e decide mudar a “cidade” para um morro, acima do rio da Carioca, que se chamou o Castelo.

Na frente. o Morro do Castelo


Visto do alto do Morro. Na frente a Ilha de Villegagnon,
hoje encostada ao Aeroporto Santos Dumont

Dois anos depois, em 1567, morre Estácio de Sá, tal como o santo que deu o nome à cidade, vítima duma flechada num olho recebida na batalha em Uruçu-Mirim, hoje a área da praia do Flamengo!

Assume o “governo” da cidade seu primo Salvador Corrêa de Sá – o Velho, para não confundir com o neto Salvador Corrêa se Sá e Benevides – que manda erguer nova ermida, desta vez em taipa, no alto do morro do Castelo, e para lá transfere os restos mortais do fundador da cidade, colocando sobre a campa uma lápide com os dizeres:




“AQUI IAZ ESTÁCIO DE / SÀA Pr° CAPITÃO E CÔ/QVISTADOR DeSTA TERRA E/ CIDADE E A CAMPA MÂ/DOV FAZER SALVADOR CORÊA DE SÀA SEV P/RIMO SEGD.° CAPITÃO/ E GRDº, CÔ SVAS ARMAS/ E ESTA CAPELLA ACA/BOV NO ANO DE 1583”.




Placa em latão que cobre a lápide original



Em 1569 já a ermida era elevada a Matriz da Freguesia de S. Sebastião, a primeira criada na cidade, e 107 anos depois a Igreja Catedral, entregue aos jesuítas.


A Igreja de São Sebastião no alto do Morro do Castelo

O Castelo ficava lá.... lá no alto do morro e a subida era braba!. Aos poucos os habitantes da cidade foram-se instalando nas áreas planas circunvizinhas, misturadas muitas delas a alagadiços doentios, e não tardou a que a Igreja de São Sebastião ficasse abandonada.
Em 1729 chegaram ao Rio dois monges capuchinhos que iam para a Missão em S.Tomé (e Príncipe). Uma vez aqui, onde o navio fazia escala, decidiram ficar e foram residir na Ermida do Bom Jesus, donde foram despejados quando esta ermida foi comprada pela Irmandade dos Homens Pardos. Passaram ao Palácio Episcopal na altura vago por morte do bispo. À chegada do sucessor do bispo, lá foram os capuchinhos corridos, para a Ermida do Desterro, que estava muito arruinada, e autorizaram-nos então a residir na Ermida da Senhora da Ajuda. Mas o povo não gostou desta intromissão e novamente vão os capuchinhos para uma casa próxima à Igreja da Conceição! Mas esta casa fora cedida para ali se criar um seminário (de S. José) e outra vez os capuchinhos são postos a andar! Dezenove anos depois, em 1739, continuam os “padres barbadinhos” peregrinando para um pobre e humilde hospício, com sua capelinha de invocação da Senhora da Oliveira.

Ajudados com esmolas do povo, concluíram o hospício em 1742, e finalmente foi dada posse desta casa aos frades capuchinhos!

Foi na horta destes frades que se plantaram os dois primeiros cafezeiros trazidos do Pará em 1761!


O que foi o convento dos jesuitas e depois Observatório,
tudo com ar de abandono

Com o passar do tempo a Igreja de São Sebastião, lá no alto do morro continuava abandonada; foram caindo telhado e paredes e só no governo do Conde de Resende, 1796-1801, com esmolas do povo, é que se procedeu à reconstrução do que não era mais do que um monte de ruínas, evitando que o antigo edifício desaparecesse de vez.

Com a chegada da família real mudaram-se os frades carmelitas para o Hospício dos Barbadinhos, e certamente por estarem já de “saco cheio” de andarem de Herodes para Pilatos, em 1831 os capuchinhos, aliás o único que restava, Frei António de Génova, entregou a Igreja e foi-se para a Europa.

Mas... em 1842 chegam novos frades desta congregação e o governo e o bispo deram-lhes então a Igreja de S. Sebastião, no alto do morro do Castelo, que mais uma vez estava abandonada ameaçando desmoronar! Madeiramento podre, a ruir, rachas nas paredes, etc. Reconstruíram-na, edificaram outro hospício, e ali ficaram até que o morro do Castelo foi desmontado em 1922!

Exumados os ossos do fundador da cidade, foram levados em solene procissão até ao Convento provisório dos Capuchinhos, de onde passaram para a nova Igreja de São Sebastião, na rua Haddock Lobo, acabada de construir em 1931, e onde descansam até hoje!

A "nova" igreja de São Sebastião, na rua Haddock Lobo, Tijuca.
"Nova"! É exatamente da minha idade!


Detalhe da nova Igreja, com a alegoria a Estácio de Sá
A arquitetura desta Igreja é de gosto discutível, mas ali repousam os ossos do fundador do Rio de Janeiro, Estácio de Sá, cobertos com a mesma lápide que lhe mandou fazer seu primo e segundo governador do Rio, lápide esta hoje coberta por outra igual, fundida em latão, que jaz em frente ao altar mor da Igreja. Na mesma Igreja, de lado, está também o padrão original, que aquele mandara fazer para simbolizar a fundação da cidade que viria a ser maravilhosa.


O padrão da "Cidade Maravilhosa"!
Vale a pena a visita. E lembrar o ato heróico daquele que, de acordo com o estudo da ossada feita quando se restaurou a sua campa, em 1862/63, seria um típico português de 1,74 m de altura!

Como se vê há uma profunda ligação entre Estácio de Sá, os frades capuchinhos, o Morro do Castelo, e tudo quanto deste sobra, dos primórdios deste Rio, maravilhoso, a Ladeira da Misericórida, o único acesso ao topo do Morro, e que subsiste, encostada ao edifício da Santa Casa da Misericórdia, para que os cariocas, os brasileiros, e os portugueses também, porque não?, não esqueçam como seria este Rio há quatro séculos e meio!


O que "sobra" do Morro do Castelo: a Ladeira da Misericórdia!


A Ladeira que não leva a lugar algum, mas que é a mais antiga remeniscência da velha cidade.


15-jan-10