2 de fev. de 2011

CATURRICES

LIGADOS À MÁQUINA - III

 Antes de prosseguir, um reparo técnico, para alívio da minha consciência: ainda que seja uma prática muito vulgarizada, faz pouco sentido medir a Dívida Externa (seja ela pública ou privada) em termos de PIB. Uma é a “fotografia” numa determinada data (uma visão estática, um stock); o outro é um acumulado ao longo de um ano (uma visão dinâmica, um fluxo).


 O que faria sentido, e seria da maior utilidade, era, sim, comparar o serviço da Dívida Externa (reembolsos, juros e encargos; fluxos, portanto) com o PIB e as projecções do PIB (outros fluxos). Infelizmente, não estão disponíveis dados sobre o serviço da Dívida Externa, nem no ano corrente, nem nos anos vindouros. Será porque ninguém sente a falta dessa informação? Ou é “top secret”, para não cair em mãos de hereges?


 Mas se não sentem, deveriam. É que, para ver a Dívida Pública ao exterior, e só esta, reduzida a metade ao fim de 10 anos, seria necessário que, superavits da BTC e Investimento Directo Estrangeiro, entre eles, gerassem, por ano, acréscimos de Reservas Cambiais (antes do serviço da Dívida Externa) da ordem dos 5%-6% do PIB [Nota: Nada de críticas, Leitor; trata-se de uma relação entre dois fluxos]. O que sugere para onde olhar e dá uma primeira ideia sobre a dimensão do problema que verdadeiramente nos atormenta.


 Continuemos então com o PIB como medida, à falta de melhor. A questão que ficou em aberto é a de saber como foi possível financiar deficits anuais da BTC tão elevados (desde 1997/1998, sempre acima dos 8% do PIB e várias vezes a ultrapassarem os 10%). Porque, não tenhamos ilusões, se esses deficits não fossem financiáveis, nunca teria sido possível um desequilíbrio externo de tamanha amplitude, durante tanto tempo.


 Os acréscimos líquidos da Dívida Pública ao exterior dariam para financiar o equivalente a 2%-3% do PIB, se tanto. Mas, e o restante? Como foi financiado o restante, estes anos todos?


 Através das Famílias não terá sido certamente, porque as Famílias residentes, como se sabe, não têm acesso directo aos mercados financeiros internacionais. E as Empresas, por cá - excepção feita a umas quantas, poucas (tratarei destas numa próxima Caturrice) - também não encontram lá fora Banco ou Instituição Financeira que lhes empreste.


 Sobram os nossos Bancos. Mas convém começar por esclarecer que o BdP, após a adesão à zona Euro, deixou de emitir dívida nos mercados financeiros internacionais. Ergo: os Bancos que têm estado a sustentar o desequilíbrio externo são, unicamente, os Bancos Comerciais (que designarei simplesmente por Bancos, daqui em diante).


 E ocorre perguntar: (1) Como é que eles, por sua vez, se financiaram, donde lhes veio o dinheiro? (2) Poderão continuar a financiar-se como até aqui? (3) Haverá limites para o endividamento externo dos Bancos? (4) Que efeitos teve o endividamento externo dos Bancos na economia portuguesa?


 Basearei as respostas no conjunto dos 7 maiores Grupos Bancários portugueses (BCP, BES, BPI, BST, CGD, BANIF, MG/CE), os quais representam mais de 85% do Activo Líquido (imobilizado, carteiras de crédito bancário e de títulos, etc., após amortizações e provisões) do nosso sistema bancário. Designá-los-ei por “Bancos” ou “amostra”. E, para que o texto não fique tão denso, representarei mil Milhões por mM.


 Começando pelo princípio. Nos últimos 10 anos, os Bancos procederam a entradas de capital, mas não suficientes para exibirem, hoje, níveis de capitalização (com base nos Capitais Próprios - ou seja: Capital Social mais Prémios de Emissão mais Reservas mais Resultados Transitados, mas excluindo o Resultado do Exercício em causa) confortáveis.


 [Nota: Não estranhe, Leitor, esta minha preocupação com definir o que sejam Capitais Próprios. Por razões que, de todo, me escapam, os Reguladores, por esse mundo fora, têm permitido que a Banca, em geral, considere como Capitais Próprios rubricas que as restantes Empresas são obrigadas a contabilizar no Passivo Remunerado. Num sector gravemente descapitalizado, por obra e graça também destas fantasias contabilísticas, os Bancos portugueses não são excepção.]


 Retomando o fio à meada...E emitiram dívida a médio/longo prazo nos mercados financeiros internacionais, além de contarem com os Depósitos dos seus Clientes. Só que: (1) nem a “base de Depósitos” [Nota: A proporção dos Depósitos no Passivo Remunerado Total] aumentou visivelmente na generalidade dos Bancos; (2) nem eles se preocuparam muito com isso, privilegiando, sim, a tomada de fundos por grosso, no mercado monetário interbancário internacional (MMIX; na realidade, junto de uma dúzia de Bancos, não mais).


 E chegamos, finalmente, ao fulcro da questão. Em 31/12/2009, os 7 maiores Grupos Bancários estavam endividados no MMIX em € 43.9 mM (26% do PIB - dos quais € 14.9 mM (9% do PIB) a Bancos Centrais (e não só ao Eurosistema).


 Esta dívida bruta, e só esta, representava, no fecho de 2009, 1.9x os Capitais Próprios na amostra (variando entre 1.1x e 4.7x), com um prazo médio ligeiramente inferior a 6 meses (variando entre os 3 meses e os 15 meses).


 A dívida líquida (isto é, dívida bruta, deduzidas as posições credoras no MMIX e as aplicações junto de Bancos Centrais) era de € 31.4 mM (19% do PIB; 1.4x os Capitais Próprios na amostra, variando entre 0.4x e 3.5x).


 Igualmente interessante é notar que, com vencimento a menos de 1 ano, junto do MMIX, as dívidas excediam as aplicações em € 14.7 mM (9% do PIB; 0.63x os Capitais Próprios, na amostra; € 1.9 mM a menos de 3 meses, mas com um Banco a atingir, neste prazo, um descoberto de € 5.5 mM) o que dá bem a medida do que seja a “ansiedade do roll over”: Será que os Bancos depositantes vão renovar os seus depósitos no vencimento? Será que conseguiremos reaver todas as nossas aplicações no MMIX?


 Decorridos 6 meses, em 31/06/2010, a situação tinha mais ou menos este aspecto:


- Endividamento bruto junto do MMIX: € 68.1 mM (40% do PIB; 3.0x os Capitais Próprios na amostra, variando entre 1.6x e 6.4x), dos quais € 40.9 mM (24% do PIB) junto de Bancos Centrais;


- Prazo médio da dívida bruta junto do MMIX: nos 3 Bancos que publicaram a distribuição temporal do seu endividamento junto do MMIX, o prazo médio encolheu entre 1 e 5 meses (é incompreensível como os Bancos são autorizados a omitir, nas suas Demonstrações Financeiras semestrais, informação de tal importância);


- Dívida líquida (conforme ficou definido mais acima): € 56.9 mM (33% do PIB; 2.5x os Capitais Próprios na mostra, variando entre 1.5x e 5.8x);


- Roll over a 1 ano (estimativa, uma vez que 4 dos Bancos não divulgaram dados): cerca de € 40.0 mM (23% do PIB; 1.8x os Capitais Próprios na amostra);


- Roll over a 3 meses (idem): cerca de € 30.0 mM (18% do PIB; 1.3x os Capitais Próprios na amostra)


 Pergunto se, em vista disto, ainda fará sentido arrepelar os cabelos por causa do estado da Dívida Pública e do deficit orçamental.


 É que alguns Bancos ultrapassaram já (e não foi hoje nem ontem) o limiar de endividamento no MMIX que desencadeou a crise asiática de 1997 – e o nosso sistema bancário, como um todo, há uma década que ronda perigosamente esse limiar. (cont.)


A.PALHINHA MACHADO


Setembro de 201

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