CATURRICES
LIGADOS À MÁQUINA - III
Antes de prosseguir, um reparo técnico, para alívio da minha consciência: ainda que seja uma prática muito vulgarizada, faz pouco sentido medir a Dívida Externa (seja ela pública ou privada) em termos de PIB. Uma é a “fotografia” numa determinada data (uma visão estática, um stock); o outro é um acumulado ao longo de um ano (uma visão dinâmica, um fluxo).
O que faria sentido, e seria da maior utilidade, era, sim, comparar o serviço da Dívida Externa (reembolsos, juros e encargos; fluxos, portanto) com o PIB e as projecções do PIB (outros fluxos). Infelizmente, não estão disponíveis dados sobre o serviço da Dívida Externa, nem no ano corrente, nem nos anos vindouros. Será porque ninguém sente a falta dessa informação? Ou é “top secret”, para não cair em mãos de hereges?
Mas se não sentem, deveriam. É que, para ver a Dívida Pública ao exterior, e só esta, reduzida a metade ao fim de 10 anos, seria necessário que, superavits da BTC e Investimento Directo Estrangeiro, entre eles, gerassem, por ano, acréscimos de Reservas Cambiais (antes do serviço da Dívida Externa) da ordem dos 5%-6% do PIB [Nota: Nada de críticas, Leitor; trata-se de uma relação entre dois fluxos]. O que sugere para onde olhar e dá uma primeira ideia sobre a dimensão do problema que verdadeiramente nos atormenta.
Continuemos então com o PIB como medida, à falta de melhor. A questão que ficou em aberto é a de saber como foi possível financiar deficits anuais da BTC tão elevados (desde 1997/1998, sempre acima dos 8% do PIB e várias vezes a ultrapassarem os 10%). Porque, não tenhamos ilusões, se esses deficits não fossem financiáveis, nunca teria sido possível um desequilíbrio externo de tamanha amplitude, durante tanto tempo.
Os acréscimos líquidos da Dívida Pública ao exterior dariam para financiar o equivalente a 2%-3% do PIB, se tanto. Mas, e o restante? Como foi financiado o restante, estes anos todos?
Através das Famílias não terá sido certamente, porque as Famílias residentes, como se sabe, não têm acesso directo aos mercados financeiros internacionais. E as Empresas, por cá - excepção feita a umas quantas, poucas (tratarei destas numa próxima Caturrice) - também não encontram lá fora Banco ou Instituição Financeira que lhes empreste.
Sobram os nossos Bancos. Mas convém começar por esclarecer que o BdP, após a adesão à zona Euro, deixou de emitir dívida nos mercados financeiros internacionais. Ergo: os Bancos que têm estado a sustentar o desequilíbrio externo são, unicamente, os Bancos Comerciais (que designarei simplesmente por Bancos, daqui em diante).
E ocorre perguntar: (1) Como é que eles, por sua vez, se financiaram, donde lhes veio o dinheiro? (2) Poderão continuar a financiar-se como até aqui? (3) Haverá limites para o endividamento externo dos Bancos? (4) Que efeitos teve o endividamento externo dos Bancos na economia portuguesa?
Basearei as respostas no conjunto dos 7 maiores Grupos Bancários portugueses (BCP, BES, BPI, BST, CGD, BANIF, MG/CE), os quais representam mais de 85% do Activo Líquido (imobilizado, carteiras de crédito bancário e de títulos, etc., após amortizações e provisões) do nosso sistema bancário. Designá-los-ei por “Bancos” ou “amostra”. E, para que o texto não fique tão denso, representarei mil Milhões por mM.
Começando pelo princípio. Nos últimos 10 anos, os Bancos procederam a entradas de capital, mas não suficientes para exibirem, hoje, níveis de capitalização (com base nos Capitais Próprios - ou seja: Capital Social mais Prémios de Emissão mais Reservas mais Resultados Transitados, mas excluindo o Resultado do Exercício em causa) confortáveis.
[Nota: Não estranhe, Leitor, esta minha preocupação com definir o que sejam Capitais Próprios. Por razões que, de todo, me escapam, os Reguladores, por esse mundo fora, têm permitido que a Banca, em geral, considere como Capitais Próprios rubricas que as restantes Empresas são obrigadas a contabilizar no Passivo Remunerado. Num sector gravemente descapitalizado, por obra e graça também destas fantasias contabilísticas, os Bancos portugueses não são excepção.]
Retomando o fio à meada...E emitiram dívida a médio/longo prazo nos mercados financeiros internacionais, além de contarem com os Depósitos dos seus Clientes. Só que: (1) nem a “base de Depósitos” [Nota: A proporção dos Depósitos no Passivo Remunerado Total] aumentou visivelmente na generalidade dos Bancos; (2) nem eles se preocuparam muito com isso, privilegiando, sim, a tomada de fundos por grosso, no mercado monetário interbancário internacional (MMIX; na realidade, junto de uma dúzia de Bancos, não mais).
E chegamos, finalmente, ao fulcro da questão. Em 31/12/2009, os 7 maiores Grupos Bancários estavam endividados no MMIX em € 43.9 mM (26% do PIB - dos quais € 14.9 mM (9% do PIB) a Bancos Centrais (e não só ao Eurosistema).
Esta dívida bruta, e só esta, representava, no fecho de 2009, 1.9x os Capitais Próprios na amostra (variando entre 1.1x e 4.7x), com um prazo médio ligeiramente inferior a 6 meses (variando entre os 3 meses e os 15 meses).
A dívida líquida (isto é, dívida bruta, deduzidas as posições credoras no MMIX e as aplicações junto de Bancos Centrais) era de € 31.4 mM (19% do PIB; 1.4x os Capitais Próprios na amostra, variando entre 0.4x e 3.5x).
Igualmente interessante é notar que, com vencimento a menos de 1 ano, junto do MMIX, as dívidas excediam as aplicações em € 14.7 mM (9% do PIB; 0.63x os Capitais Próprios, na amostra; € 1.9 mM a menos de 3 meses, mas com um Banco a atingir, neste prazo, um descoberto de € 5.5 mM) o que dá bem a medida do que seja a “ansiedade do roll over”: Será que os Bancos depositantes vão renovar os seus depósitos no vencimento? Será que conseguiremos reaver todas as nossas aplicações no MMIX?
Decorridos 6 meses, em 31/06/2010, a situação tinha mais ou menos este aspecto:
- Endividamento bruto junto do MMIX: € 68.1 mM (40% do PIB; 3.0x os Capitais Próprios na amostra, variando entre 1.6x e 6.4x), dos quais € 40.9 mM (24% do PIB) junto de Bancos Centrais;
- Prazo médio da dívida bruta junto do MMIX: nos 3 Bancos que publicaram a distribuição temporal do seu endividamento junto do MMIX, o prazo médio encolheu entre 1 e 5 meses (é incompreensível como os Bancos são autorizados a omitir, nas suas Demonstrações Financeiras semestrais, informação de tal importância);
- Dívida líquida (conforme ficou definido mais acima): € 56.9 mM (33% do PIB; 2.5x os Capitais Próprios na mostra, variando entre 1.5x e 5.8x);
- Roll over a 1 ano (estimativa, uma vez que 4 dos Bancos não divulgaram dados): cerca de € 40.0 mM (23% do PIB; 1.8x os Capitais Próprios na amostra);
- Roll over a 3 meses (idem): cerca de € 30.0 mM (18% do PIB; 1.3x os Capitais Próprios na amostra)
Pergunto se, em vista disto, ainda fará sentido arrepelar os cabelos por causa do estado da Dívida Pública e do deficit orçamental.
É que alguns Bancos ultrapassaram já (e não foi hoje nem ontem) o limiar de endividamento no MMIX que desencadeou a crise asiática de 1997 – e o nosso sistema bancário, como um todo, há uma década que ronda perigosamente esse limiar. (cont.)
A.PALHINHA MACHADO
Setembro de 201
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